quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ten Count

Eu estava comentando com a minha chefe que algumas profissões não são bem representadas em histórias fictícias, como livros, novelas, filmes... e quadrinhos. Especificamente, a nossa profissão é uma delas. Nesse mesmo dia, eu cheguei em casa, vi que Ten Count já estava com uma quantidade boa de capítulos traduzidos e resolvi ler. Fiquei muito surpreso ao ver que tipo de história a Takarai Rihito estava preparando.

A história começa com o presidente de uma companhia se envolvendo em um acidente, que só não foi mais grave pela intervenção de um ciclista, Kurose Riku. O presidente deseja demonstrar sua gratidão, pedindo a seu secretário para insistir para que Kurose aceite. Logo de cara, Kurose pergunta se Shirotani Tadaomi é misofóbico (isto é, tem fobia de germes e contaminação) e diz que, como parece ser um caso sério, ele deveria consultar um médico. Com esse comentário de Kurose, mais o fato de Shirotani estar insatisfeito com seu jeito de ser, ele acaba buscando tratamento em uma Clínica de Psicologia Cognitiva (o que ficou meio confuso nesse mangá para mim foi o que essa clínica no fim é. É uma clínica só de Psicologia? É uma espécie de hospital?). Lá, ele encontra Kurose e fica sabendo que ele é um dos psicólogos da clínica.

Os dois vão para um restaurante conversar e Shirodani responde várias perguntas de Kurose sobre seu TOC. Até que Kurose pede que ele escreva números de 1 a 10 num caderno e liste atividades que ele não consegue fazer, sendo o número 1 a menos aversiva e a número 10 a mais. Eu achei isso fantástico, porque essa é uma técnica real. Kurose promete para Shirodani que quando ele conseguir completar a coisa número "10" ele estará curado (vou comentar mais sobre isso depois) e diz que, como foi por influência dele que o Shirodani foi buscar o tratamento, não cobrará pelas sessões, mas pede para que Shirodani seja seu amigo.

A partir daí, os dois se encontram no sábado, no mesmo restaurante, e tentam realizar as coisas da lista. Sendo o item mais fácil, começam tentando tocar a maçaneta sem luvas, depois vão à uma livraria comprar um livro... Mas, ao mesmo tempo que Shirodani dá passos para a frente, ele também acaba dando passos para trás. Isso ilustra bem o quanto é, realmente, difícil o tratamento para quem tem TOC.

  

A arte é da Takarai Rihito. Ponto. Isso significa que as ilustrações são lindas, os personagens são muito bonitos e os cenários são super-detalhados. A história é interessante e envolvente, estou curioso para saber como termina. Ela claramente pesquisou sobre TOC e sobre Psicologia Cognitiva para escrever esse trabalho, ao ponto que eu gostaria de voltar ao meu segundo ano de faculdade só para poder usar esse mangá em alguma atividade de aula. Vou dar uma nota "9", porque é muito, muito bom!

A tradução em inglês é do Paradise Love Scanlations e parece que o Canis Major Scanlations também está trabalhando na série.

Esse post continuará abaixo. Acima está a resenha padrão. Abaixo, eu vou ser bem chato e bem prolixo. Ah, e tem vários spoilers. Quem for ler, está avisado!




Continua por aqui? Que pessoa corajosa você é!

Vamos nos aprofundar um pouco na personagem do Shirotani. Ele sofre de misofobia, que é um medo patológico de contaminação e germes, sendo uma das possíveis características do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). O TOC é um transtorno ansioso caracterizado por pensamentos intrusivos que produzem ansiedade e que fazem o indivíduo engajar em comportamentos repetitivos para diminuir essa ansiedade. Há vários tipos de TOC, por assim dizer. No caso do Shirotani, os pensamentos intrusivos são referentes à contaminação/germes e, para aliviar a ansiedade, ele lava as mãos dezenas de vezes por dia (ao ponto de suas mãos sangrarem), usa luvas, higieniza suas coisas com álcool, evita contato físico com os outros, não permitem que toquem em suas coisas, e vários outros comportamentos.

Eu achei brilhante a forma que a Takarai Rihito conseguiu retratar o TOC. A cena que o Shirotani tenta abrir a maçaneta sem usar luvas é muito boa. Vemos os vários pensamentos (invasivos) que lhe despertam ansiedade, representados pela porta cheia de marcas de mãos. O que eu achei complicado foi o Shirotani tocar a maçaneta uma vez, não lavar as mãos, e pensar que foi fácil. Não, não é fácil assim na vida real.

  

Outro ponto importante dos transtornos mentais é que para eles serem considerados um transtorno, eles precisam causar sofrimento para o indivíduo (ou para outras pessoas) e prejuízos sociais, ocupacionais, etc. O Shirotani consegue lidar com questões ocupacionais, já que o seu chefe conhece a situação, mas tem claros prejuízos sociais, não conseguindo ter amigos e uma das coisas que ele considera mais difíceis é apertar a mão de outra pessoa. Além disso, Shirotani refere não gostar do jeito que é e desejar mudá-lo. Aparentemente, ele tem alguma questão no passado que tem a ver com o TOC (algum trauma ou algo assim), mas a Takarai Rihito, até o momento, não endereçou a questão. É interessante que por mais que o Shirotani esteja insatisfeito consigo mesmo, ele tem vergonha/medo que alguém o veja buscar tratamento ou comprar um livro de auto-ajuda (isso é extremamente comum na vida real, mais kudos para a Takarai Rihito por ter feito uma boa pesquisa!).

Quanto às técnicas utilizadas pelo Kurose, elas realmente existem. A enumeração de 1 a 10 de atividades e tentar realizá-las, muitas vezes na companhia do psicólogo, existe. O Kurose está constantemente explicando o que está fazendo para o Shirodani (por exemplo, que ele precisa fazer o ato difícil e não lavar as mãos em seguida, para "funcionar". Isso se chama contingência. Mesma coisa quando você dá um castigo para uma criança em seguida de ela ter feito algo errado. Ela vai associar a coisa errada com o castigo. Já se esperar demais para castigá-la, o castigo perde o sentido e deixa de ser continente), o que se faz muito na Terapia Cognitivo-Comportamental, pois se tem como um dos objetivos que o paciente se torne seu próprio psicoterapeuta. O Kurose também reforça os comportamentos construtivos do Shirodani, elogiando-o e relembrando-o de que foi por seu próprio esforço e mérito que ele conseguiu conquistar as coisas.

Claro, como esse é um mangá, uma história fictícia, a Takarai Rihito tomou uma série de liberdades. Para início de conversa, como eu disse, tudo é "muito fácil". E o Kurose comete várias gafes.

  

Minhas reclamações: 1) Kurose ter dito "quando você atingir o número 10, estará curado". Eu não trabalho com essa abordagem, mas eu sei que não é tão simples assim. Fora que, algumas vezes, o paciente dá um passo pra frente e dois para trás. 2) Kurose em vários momentos foi muito, muito inadequado e não profissional. Para começo de conversa, ele está fazendo sessões em um restaurante! Fora que ele interrompeu o atendimento do nada e deixou o Shirodani desamparado. 3) Propor amizade e usar técnicas da psicoterapia. Não se pode aplicar técnicas psicoterápicas em um amigo ou se tornar amigo de um paciente. A relação é importante para a psicoterapia dar certo, por isso o psicologo e seu paciente precisam de uma relação "neutra". Com amizade, o contexto clínico se torna enviesado. Isso que eu nem comecei a falar de amor. Não existe se apaixonar por paciente. É eticamente inadequado. Mas, como eu disse, esse é um trabalho de ficção. 4) Não existe dizer "faça essas dez coisas e você está curado". Nunca é tão simples assim. O próprio Kurose diz que as pessoas têm condições diferentes em cada dia (i.e num dia você consegue fazer algo, no outro não se sente confiante para fazer). 5) Apesar de ser a atitude correta para um psicoterapeuta se afastar de um paciente quando você percebe que seus sentimentos estão atrapalhando a psicoterapia, isso não significa abandoná-lo completamente, como o Kurose fez. Ele, no mínimo, devia ter passado o contato de outro psicólogo para o Shirodani e orientá-lo a procurar atendimento. Agora, pura implicância minha, mas o Kurose é um dos psicólogos menos empáticos que eu já vi (ok, ele só perde pro cara de Sessão de Terapia, que é tão empático quanto uma samambaia seca).

Não me entendam mal: o mangá continua sendo muito bom. Isso sou só eu sendo chato. Eu não sou especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental (muito pelo contrário), mas esses foram alguns pontos que eu percebi e quis esclarecer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário